Danielle Ferreira Medeiro da Silva de Araújo, Organizadora do Dossiê, Pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados sobre as Américas, Departamento de Estudos Latino-Americanos, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil.
Johana Kunin, Organizadora do Dossiê, Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas, Buenos Aires, Argentina.
Rosamaria Giatti Carneiro, Organizadora do Dossiê, Departamento de Saúde Coletiva, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil.
O Dossiê Cuidado no Brasil e na Argentina, publicado pela Interface – Comunicação, Saúde, Educação, é resultado das reflexões do “Seminário Internacional Reconfigurações nas agendas de cuidado em tempos pandêmicos: reflexões sobre o Brasil e a Argentina”, realizado na cidade de Brasília, nos dias 25 e 26 de agosto de 2022. Durante o evento, foram discutidas duas realidades distintas, a brasileira e a argentina, explorando aproximações e distanciamentos que permitiram contribuir com os estudos sobre cuidados a partir de uma perspectiva interseccional. O objetivo foi comparar a condução estatal da pandemia de COVID-19 e os arranjos de cuidado empreendidos pelas mulheres em ambos os países.
O evento, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados sobre as Américas, da Universidade de Brasília (UnB), foi organizado pelas professoras Rosamaria Giatti Carneiro e Danielle Ferreira Medeiro da Silva de Araújo.
Dentre os artigos apresentados no dossiê, Gestar, parir e não se tornar mãe: recusas, impossibilidades e violações no contexto da COVID-19, de Alessandra Rinaldi, André Vicente, Giulia Escuri e Juliana Rocha, torna visível uma realidade cruel influenciada pela pandemia, em que mulheres, em sua maioria negras e pobres, impossibilitadas de cuidar, decidiram pela “entrega voluntária” de seus filhos nas comarcas do Rio de Janeiro.
Analisando o enfrentamento da pandemia pela terceira idade, o texto de Marcia Reis Longhi, Cuidados, velhice e pandemia: algumas questões para pensar o cenário brasileiro, evidencia a fragilidade dos idosos, bem antes do advento da pandemia, e problematiza como o desmantelamento das poucas políticas voltadas para essa população – como o não reconhecimento da profissional cuidadora – acentuou o seu desamparo dentro do contexto social brasileiro.
A antropóloga Denise Pimenta, revisitando sua etnografia feita em Serra Leoa, durante a epidemia de ebola, reflete em “Eu preferia estar doente!”: o cuidado a contrapelo. Um breve ensaio sobre o que a pandemia de Covid-19 pode revelar acerca do ofício da antropóloga sobre a economia moral do cuidado nas particularidades das mulheres nesse cenário, evidenciando as agruras do cuidado diante de outras tantas desigualdades estruturais que afetam as cuidadoras.
No artigo Reflexões sobre agendas de cuidado e população negra brasileira, a jurista Walkyria Chagas particulariza o debate sobre raça e pandemia e como essa interface é fundamental para entendermos quem morreu, quem cuidou e quem pôde cuidar, com foco nas trabalhadoras domésticas e todas as dificuldades e mobilizações ocorridas dentro do cenário da crise sanitária.
Explorando a realidade argentina, Marina Moguillansky e Carolina Duek realizaram um estudo de narrativas no contexto local, mais especificamente, com mulheres de periferia ou de camadas populares da cidade de Buenos Aires que cuidam de crianças e idosos. La crisis de cuidados en primera persona. Un estudio con mujeres cuidadoras de sectores populares del Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA), Argentina trouxe como resultados que a maioria das mulheres pesquisadas se sentiu sobrecarregada durante a pandemia e passou a fazer uso de medicamento psicotrópico, padecendo de sofrimento psíquico por conta de sua situação de vida.
Outro estudo dentro do contexto argentino foi realizado por Maria Fernanda González e Marina Mattioli, na província de Entre Rios, na região de Mesopotamia no leste da Argentina, fronteira com o Uruguai. A análise Salud mental perinatal y cuidados. Intersecciones y reconfiguraciones en contexto de pandemia por Covid-19, en Argentina destacou o cotidiano de mães e sua saúde mental diante da sobrecarga de trabalhos produtivos e reprodutivos, e direciona como resultados a importância de construção de políticas de cuidados específicos para as mulheres interioranas e de camadas populares.
É preciso salientar que a agenda do(s) cuidado (s) tem ganhado relevância pública e política ao longo da última década. Contudo, os progressos nos países da América Latina são distintos e em diferentes estágios. As políticas de cuidados são políticas públicas cujo objetivo é reorganizar e compartilhar a responsabilidade social pelos cuidados, por meio de um conjunto de iniciativas que visam atender tanto às necessidades de quem demanda cuidados e de quem os presta.
Desde o final de 2019, o cuidado tem sido fortemente discutido na agenda pública nacional na Argentina. Em 2023, o projeto de lei “Cuidar en Igualdad” (Cuidar em Igualdade) foi discutido, mas não foi aprovado. Esse projeto buscava criar um sistema integral de cuidados com perspectiva de gênero, ou seja, um conjunto de políticas e serviços que garantisse provisão, socialização, reconhecimento e redistribuição do trabalho de cuidados entre o setor público, o setor privado, as famílias e as organizações comunitárias e entre todas as identidades de gênero, de modo que todas as pessoas tivessem acesso igualitário aos direitos de cuidar e ser cuidado. A Argentina, que estava com uma proposta de criação de um sistema integral de cuidados no Congresso Nacional, atualmente está com a pauta parada, tendo em vista as mudanças políticas no país.
Em 2023, após a pandemia de COVID-19, o Brasil começou a construir a Política e o Plano Nacional de Cuidados, que se refletiu na criação de duas secretarias: Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (SNCF/MDS) e a Secretaria Nacional de Autonomia Econômica e Políticas de Cuidados, do Ministério das Mulheres (SENAEC/MMulheres).
A Política estabeleceu que o cuidado é entendido como a produção de bens e serviços necessários para a reprodução das sociedades, para o sustento da vida e a garantia do bem-estar das pessoas. Isso inclui as tarefas cotidianas, como a preparação de alimentos, manutenção da limpeza, organização dos domicílios e o apoio a atividades diárias de pessoas com diferentes graus de autonomia ou dependência.
Além disso, o cuidado é compreendido como direito humano universal, e se configura como um direito e uma necessidade de todas as pessoas, sendo que as necessidades de cuidado são consideradas maiores em certos momentos e condições do ciclo da vida, como para crianças e adolescentes (em especial a 1ª infância), pessoas idosas e pessoas com deficiência. O direito ao cuidado integra o direito a cuidar, a ser cuidado e ao autocuidado – bem como a corresponsabilização de gênero (entre mulheres e homens, em sua diversidade) e social (entre as famílias, as comunidades, o Estado, o mercado e as empresas).
A publicação do Dossiê se configura como um importante subsídio para as atuais discussões sobre cuidado em nosso país. Estamos no cenário de envio da Política para o Congresso Nacional e na iminência do lançamento de um Plano Nacional, além da Proposta de Emenda Constitucional n.º 14/2024. Esta emenda propõe a alteração do art. 6º da Constituição Federal para positivar o direito aos cuidados no rol dos direitos sociais. Esses três instrumentos vão democratizar o tema na sociedade e impulsionar mudanças estruturais importantes no Brasil, incluindo o enfrentamento das desigualdades de gênero, raça e classe.
Referências
ARAÚJO, D.F.M.S., et al. Apresentação – Experiências e políticas do cuidado durante e após a pandemia de Covid-19: um diálogo entre Brasil e Argentina. Interface – Comunicação, Saúde, Educação [online]. 2024, vol. 28, e240043. [viewed 10 September 2024]. https://doi.org/10.1590/interface.240043. Available from: https://www.scielo.br/j/icse/a/fWcYxshDbkwzx3dJRTvfpwt/
GUIMARÃES, W.C.S.S. Reflexões sobre agendas de cuidado e população negra brasileira. Interface – Comunicação, Saúde, Educação [online]. 2024, vol. 28, e230076 [viewed 10 September 2024]. https://doi.org/10.1590/interface.230076. Available from: https://www.scielo.br/j/icse/a/QtMRxHXMMzKWjbGSJzPNVGm/
LONGHI, M.R. Cuidados, velhice e pandemia: algumas questões para pensar o cenário brasileiro. Interface – Comunicação, Saúde, Educação [online]. 2024, vol. 28, e230180 [viewed 10 September 2024]. https://doi.org/10.1590/interface.230180. Available from: https://www.scielo.br/j/icse/a/WMWRwp6nhzxgd9nfPv6dFwQ/
PIMENTA, D. “Eu preferia estar doente!”: o cuidado a contrapelo. Um breve ensaio sobre o que a pandemia de Covid-19 pode revelar acerca do ofício da antropóloga. Interface – Comunicação, Saúde, Educação [online]. 2024, vol. 28, e230074 [viewed 10 September 2024]. https://doi.org/10.1590/interface.230074. Available from: https://www.scielo.br/j/icse/a/XZSLps6bdBRN6wKzvVkMHKJ/
RINALDI, A.A., et al. Gestar, parir e não se tornar mãe: recusas, impossibilidades e violações no contexto da Covid-19. Interface – Comunicação, Saúde, Educação [online]. 2024, vol. 28, e230070 [viewed 10 September 2024]. https://doi.org/10.1590/interface.230070. Available from: https://www.scielo.br/j/icse/a/VwKgB7sPwqn8pKPxf4cRm6S/
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