Chamada: Covid-19, a epidemia e a experiência humana e social
Será que o surgimento do SARS-CoV-2 e da epidemia da Covid-19 geraram apenas mais um tema para o campo científico? Seria essa mais uma oportunidade espetacular, entre os problemas que se estabelecem no nosso cotidiano, que devemos agarrar com a mesma avidez para produzir conhecimentos ou propor intervenções?
É por meio dessa indagação que a Interface, respeitando o escopo que lhe é definido, assim como em consideração às tradições de pensamento crítico que sempre buscou veicular na articulação da saúde com as humanidades, vem abrir sua chamada de publicações. Levando em conta a importância de contribuir para a melhor compreensão do “aqui e agora” da pandemia, que se desenvolve desde o fim de 2019 e se alastra pelo Brasil neste momento, buscamos com esta chamada incentivar uma particular aproximação das questões provocadas por essa nova doença, mas que a distinga em caráter e valor em relação a outras tantas publicações.
A epidemia nos alcança em tempos de fetichização de coisas, pessoas e ideias, que, na vida social, transforma tudo em mercadoria capitalista, significando a saúde como um bem de consumo qualquer a ponto de impor o estranho dilema entre vida e mercado. A epidemia nos alcança no campo da Saúde em tempos de reificação da inovação tecnológica, que transforma igualmente a tecnologia, e tudo o que ela representa em termos de intervenção na vida humana e social, em um bem em si, perdendo a perspectiva de seu valor de uso: para que serve mesmo esta ou aquela inovação tecnológica? Além disso, quando não há tecnologia específica e apropriada, onde está a serventia das intervenções que, um dia, já foram efetivamente úteis?
Tornar a vida social presidida pelo mercado e a vida humana, pelas inovações tecnológicas levou-nos aos excessos da produtividade tecno-científica e das intervenções em um ritmo que nos fez perder a reflexão sobre a própria criação dos bens e serviços sociais como substrato de melhoria da vida humana em sociedade; e a dimensão de que era, afinal, esta melhoria a direção última do conhecimento científico e das intervenções sociais.
Epidemias sempre constituíram tempos difíceis. Mas a da Covid-19 produziu um tempo diverso, diante da exuberância de desenvolvimento econômico, científico e tecnológico que marcou a passagem do século XX para o XXI e que embasou um grande otimismo de intervenção sobre o meio ambiente, a natureza e os adoecimentos, trazendo uma certeza ufanista de determinados percursos de desenvolvimento social. Agravada como situação a ser vivida no interior de alarmantes desigualdades sociais, em profundo desamparo de governantes dentro de um Estado que foi criado para proteger as populações em seus territórios, e por crises de confiança na ciência, na tecnologia, na medicina –em parte reativas ao encantamento anterior provenientes do confronto com as realidades concretamente vividas –, esta epidemia traz tempos sombrios, especialmente para o Brasil.
Ela não só faz suspender nossos cotidianos e os modos de viver em fluxo usual como também provoca tal ruptura entre passado e futuro, obrigando-nos a refletir sobre esse passado. Passado nem tão remoto, mas localizado naquele ponto de inflexão em que engatamos certos automatismos de práticas sociais: na produção científica, por exemplo, surgiu um produtivismo competitivo, sem sentido de criação humana e social e no obscurecimento de quais necessidades sociais estávamos, enfim, respondendo. Esse obscurecimento se deu a tal ponto que terminamos por reconhecer a existência da violência e desumanização dos serviços – como os da saúde – criados para tornar melhor a vida humana.
Alguns de nós, na Saúde Coletiva, vínhamos já identificando esses processos, mas a pandemia de Covid-19 impõe aprofundar a reflexão. Por isso, gostaríamos de resgatar por meio desta chamada para publicações o valor social das experiências humanas para a produção de conhecimentos, mas não como um substituto de outros conhecimentos de natureza científica em torno da vida e da saúde, sejam em bases biomédicas ou sócio-históricas. Esse movimento busca lembrar a diretriz última a que esses outros conhecimentos devem servir para que não se perca o caráter humano-social dos saberes e dispositivos por eles produzidos.
Para tanto, o convite ora lançado pela Interface pressupõe que podem ser apresentados ensaios sobre as experiências em diversas situações de referência, tais como as que se seguem adiante na lista de áreas temáticas desta chamada. Ao mesmo tempo, define o ensaio como sendo aquele texto em que vivências individuais ou mesmo grupais serão relatadas, não devendo, contudo, resumir-se apenas à descrição dos acontecimentos. Será obrigatório pontuar considerações de ordem social e humana acerca desse vivido que tratem das questões acima expostas ou de outras aqui não indicadas de caráter humano-social, transformando assim o relato em uma narrativa da experiência a partir da realidade vivida.
No ensaio Experiência e pobreza, de 1933, Walter Benjamim1 considera que a desvalorização da experiência faz os seres humanos perderem o vínculo com o patrimônio cultural da sua humanidade, empobrecendo suas existências, em uma “desilusão radical com o século e ao mesmo tempo uma total fidelidade a esse século” (p. 116). Afirma também: “Ficamos mais pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’” (p. 119). A pobreza a que se refere Benjamim é aquela advinda das vivências, esses estímulos que não são internalizados pelos sujeitos. Por outro lado, a experiência é um tipo de fenômeno que modifica mulheres e homens e que traz à tona um novo sujeito. As experiências têm a potencialidade de quebrar os automatismos da vida cotidiana e, dessa forma, são passíveis de serem comunicadas aos contemporâneos e transmitidas às novas gerações. Revalorizar o humano será resgatar as experiências e por isso queremos fazê-lo aqui.
A Interface abre esta chamada indicando alguns campos temáticos para a submissão nas seções Artigos, Espaço Aberto e Criação. As submissões devem seguir as normas de publicação da revista. Não havendo captação de recursos específicos para esta chamada, será aplicada a taxa de processamento de artigo atual. As submissões devem ocorrer até 30 de outubro de 2020. (Prorrogado até o dia 28 de fevereiro de 2021)
Os campos são:
- Covid-19 e saúde de populações vulneráveis no Brasil e na América Latina
- Covid-19 e seguridade social (ou Covid-19 e a centralidade da seguridade social)
- Covid-19 e saúde de trabalhadores da saúde
- Covid-19 e saúde de trabalhadores de serviços essenciais
- Covid-19 e formação de profissionais de saúde
- Comunicação e educação nas práticas de saúde voltadas à prevenção e controle do Covid-19
- Covid-19 e saúde indígena
- Covid-19 e violência doméstica
- Convid-19 e saúde mental
- Covid-19 e saúde materna
- Covid-19 e atenção primária à saúde
- Covid-19: as experiências buscam forma de expressão.
Referência
Benjamim W. Obras escolhidas. 3a ed. São Paulo: Brasilense; 1987 (v. 1).
23 de abril de 2020
Editores e editores assistentes.