Comunicação ineficaz e infodemia pioraram vulnerabilidade das pessoas em situação de rua na pandemia

Ana Maria Caldeira Oliveira, Pós-graduanda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (pós-doutorado), Instituto René Rachou – Fiocruz Minas, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Belo Horizonte, MG, Brasil.

Ana Carolina de Moraes Teixeira Vilela Dantas, Pós-graduanda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (doutorado), Instituto René Rachou –Fiocruz Minas, Fiocruz. Belo Horizonte, MG, Brasil.

Anelise Andrade de Souza, Departamento de Nutrição Clínica e Social, Escola de Nutrição, Universidade Federal de Ouro Preto. Ouro Preto, MG, Brasil. 

O artigo População em situação de rua: comunicação e (des)informação no contexto da pandemia da COVID-19, publicado na Interface – Comunicação, Saúde, Educação, aborda a importância da comunicação para a população vulnerabilizada num contexto de emergência sanitária. Entendida como um processo social de produção, circulação e apropriação dos sentidos, a comunicação assumiu uma dimensão central na pandemia em função de exercer um grande poder de influência, pois, a partir da mensagem, o emissor pode despertar interesses, provocar expectativas e convencer o receptor, de acordo com suas intenções.

Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde, vivenciamos, no curso da pandemia, uma infodemia, que teve seu aspecto mais nocivo na capacidade de propagar desinformação em larga escala, por meio de uma extensa variedade de ambientes midiáticos. Desse modo, acabou por interferir nas possibilidades de enfrentamento social da pandemia.

Se esse contexto comunicacional já é complexo para a população em geral, é importante indagar como ficaram as populações vulneráveis, como a população em situação de rua (PSR). A PSR se caracteriza pela pobreza extrema; vínculos familiares interrompidos e/ou fragilizados; inexistência de moradia convencional regular; e vivência de situações de trabalho, condições de vida e inserções sociais precárias. A PSR é nacionalmente constituída por uma maioria de homens, negros, jovens, com baixa escolaridade. A situação de rua é atribuída, principalmente, a problemas com álcool e/ou outras drogas, ao desemprego e aos conflitos familiares.

Cotidianamente, nos deparamos com pessoas em situação de rua nos logradouros públicos, para as quais, geralmente, tem-se um olhar preconceituoso influenciado pelas representações sociais historicamente construídas que tendem a tipificar negativamente a PSR. Assim, reforça-se a invisibilidade sobre as condições precárias em que vivem essas pessoas.

Nesse sentido, o artigo objetivou identificar os sentidos produzidos pela comunicação voltada à PSR a partir das percepções dos gestores e dos trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS); dos representantes da Pastoral Nacional do Povo da Rua, da Defensoria Pública e da própria PSR no município de Belo Horizonte (BH), Minas Gerais.

O estudo é do tipo exploratório descritivo de natureza qualitativa. Foram realizadas, entre 1 de junho de 2021 e 31 de maio de 2022, 48 entrevistas semiestruturadas e quatro grupos focais com a PSR, totalizando 86 interlocutores. Esse trabalho integra uma pesquisa da Fiocruz Minas, intitulada “Alcance das políticas de proteção social e de saúde do município de Belo Horizonte para a População em Situação de Rua frente à pandemia da COVID-19”, desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa em Políticas de Saúde e Proteção Social do Instituto René Rachou (GPSPS IRR).

Foram constatados três principais resultados. O primeiro diz respeito a uma consequência social negativa da pandemia, que foi o fechamento da cidade de Belo Horizonte. A PSR ficou sem acesso à possibilidade de fazer pequenos serviços – como lavar carro, vender bala e catar material reciclável. Ou seja, de executar alguma atividade que lhe permitisse a geração de recurso financeiro. Além disso, os restaurantes populares da cidade, nos quais a PSR goza do benefício da gratuidade para alimentação, fecharam. A doação de comida realizada pela população e pelos restaurantes do centro da cidade também cessou. O acesso à água potável ficou ainda mais difícil; e os serviços oferecidos pelo SUS e pelo SUAS sofreram mudanças de fluxo e funcionamento, gerando algum tipo de restrição no acesso.

Em segundo lugar, verificou-se que o modelo utilizado nas estratégias de comunicação, nos três níveis de gestão, foi, predominantemente, o modelo informacional, linear e unidirecional, marcado pela transferência de informações. Nenhuma das estratégias analisadas utilizou a comunicação dialógica. Entretanto, no enfrentamento à pandemia da COVID-19, tão importante quanto comunicar o risco é analisar as percepções das pessoas, objetivando a troca de informações qualificadas. Dessa maneira, constata-se que a PSR não teve acesso à informação verificável, confiável e no tempo certo.

O último resultado relaciona-se ao impacto sanitário, social, econômico e político causado pela pandemia, que contribuiu para o aumento da desinformação. Trata-se da desinfodemia, ou seja, uma variante da desinformação na infodemia. Para entender a desinfodemia, é necessário pensar o seu oposto, ou seja, a informação baseada no conhecimento. Outra possibilidade da desinformação na infodemia, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), é a informação falsa ou imprecisa cuja intenção deliberada é enganar. Dessa maneira, a sociedade está vulnerável à circulação de conteúdos falsos, muitas vezes com finalidades políticas.

Foram identificadas causas para a hesitação vacinal por parte da PSR: notícias falsas que consideravam a pandemia irreal, associação das vacinas ao extermínio da PSR e de idosos, e vivências pessoais relacionadas ao uso de álcool e outras drogas, que, supostamente, resultariam em imunidade frente ao vírus.

Concluímos que o fechamento da cidade potencializou a insuficiência das condições de garantia da dignidade humana da PSR, representada, por exemplo, pelas dificuldades de acesso desses indivíduos à alimentação, à água potável, a instalações sanitárias e à moradia. Por sua vez, a negligência pública comunicacional implicou na inobservância de uma dimensão do enfrentamento à pandemia que influi diretamente na sociabilização do comportamento sanitário da população.

Assim, não foi uma surpresa a demora da identificação da propagação da desinfodemia, sendo o problema percebido apenas após a manifestação comportamental de negação às medidas de enfrentamento e a ausência de uma resposta municipal a tempo de contornar os efeitos negativos dessa negação na população. Recomendamos fortemente que as estratégias de comunicação pública sejam inclusivas, dialógicas, com identificação e escuta dos grupos populacionais mais vulneráveis, e adaptadas às necessidades específicas desses grupos.

Referências

Entenda a infodemia e a desinformação na luta contra a Covid-19 [online]. Organização Pan-Americana da Saúde. 2020 [viewed 23 August 2024]. Available from: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52054/Factsheet-Infodemic_por.pdf

BRASIL. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009, institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento [online]. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 23 dez. 2009 [viewed 23 August 2024]. Available from: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7053.htm

ALZAMORA, G.C. Fixação de crenças em torno de desinformação no contexto da infodemia [online]. In: VICTOR, C. and SOUSA, C.M. (org.). A pandemia na sociedade de risco: perspectivas da comunicação. Campina Grande: EDUEPB, 2021, pp. 165-79 [viewed 23 August 2024]. Available from: https://books.scielo.org/id/vpqnw/pdf/victor-9786526800546-09.pdf

LERNER, K., CARDOSO, J.M. and CLÉBICAR, T. Covid-19 nas mídias: medo e confiança em temposde pandemia. In: MATTA, G.C., et al. (org.). Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021. pp. 221-31.

SANTAELLA, L. Comunicação e pesquisa: projetos para mestrado e doutorado. São Paulo: Hacker Editores, 2001.

VERON, E. A produção do sentido. São Paulo: Cultrix, 1980.

Para ler o artigo, acesse

OLIVEIRA, A.M.C., et al. População em situação de rua: comunicação e (des)informação no contexto da pandemia de Covid-19. Interface (Botucatu) [online]. 2024, vol. 28, e230433 [viewed 23 August 2024]. https://doi.org/10.1590/interface.230433. Available from: https://www.scielo.br/j/icse/a/mCQ7xW4pJFWC9Z6hfmfFPSB/