Zika: do sertão nordestino à ameaça global, de Debora Diniz
Natália Helou Fazzioni(a)
(a)Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Largo São Francisco de Paula, 1, Centro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20051-070. nataliafazzioni@ gmail.com
Entre médicos de beira de leito e pacientes sertanejos: os primeiros passos do vírus Zika no Brasil
Dois anos após o surgimento dos primeiros casos do vírus Zika no Brasil, o assunto que mobilizou o país nos anos de 2015 e 2016 já não configura mais uma “emergência global” – decretada, pela Organização Mundial de Saúde, em fevereiro de 2016 e encerrada em novembro do mesmo ano –, tampouco estampa semanalmente os noticiários nacionais. Débora Diniz, autora do livro “Zika: do sertão nordestino à ameaça global”, afirma assertivamente, nas páginas iniciais do seu livro, que “o tempo da comunicação científica é mais lento que o das urgências em saúde”1 (p. 11); e, se no contexto de escrita do livro, a autora “corre contra o tempo” para produzir uma pesquisa sobre o vírus no auge de sua proliferação, esta resenha é escrita um ano depois de sua publicação, quando uma série de pesquisas são desenvolvidas sobre o tema em diferentes áreas, dentro e fora do Brasil.
A despeito dessa consideração temporal, o livro de Diniz, entretanto, apresenta uma contribuição única à temática por ter acompanhando in loco os primeiros momentos da epidemia no país. Isso porque boa parte da pesquisa foi realizada por Diniz na região Nordeste, onde não só estavam a maior parte dos pacientes afetados pelo vírus como também os principais médicos e pesquisadores responsáveis por sua descoberta. Nesse contexto, o maior mérito do livro talvez seja justamente demonstrar a importância desses indivíduos para a identificação do vírus em dois momentos distintos: inicialmente, com os primeiros pacientes acometidos pela, então, desconhecida doença no sertão nordestino e, alguns meses depois, com a aparição dos fetos com má formação devido à transmissão vertical do Zika.
Embora a autora afirme tratar-se de um trabalho etnográfico, o tom que predomina em seu livro – e que torna sua leitura fácil e cativante – é praticamente de um texto jornalístico investigativo, com diversos personagens e datas, sem nenhuma discussão teórica explicitamente referenciada. Os caminhos percorridos por Diniz não levam a uma única resposta, mas nos inspiram a fazer, junto com ela, uma aposta que permeia toda a narrativa do livro: a de que as hipóteses dos chamados “médicos de beira de leito”, a partir de suas experiências de cuidado e contato direto com as pessoas doentes, são sempre antecipadas, ainda que necessariamente interligadas àquelas feitas por “cientistas de bancada”, que estão circunscritos aos laboratórios.
Nesse sentido, ela segue os passos de médicos que estiveram ligados a um grupo de Whatsapp(b) chamado “Chick V a missão”, inicialmente formado por alguns especialistas para discutir o surto de Chikungunya no Brasil – boa parte das principais descobertas sobre o Zika passaram por médicos ligados a esse grupo. Dr. Kléber Luz é talvez o mais central deles, pois aparece em diferentes momentos no livro: foi ele quem inicialmente suspeitou da existência de uma nova doença sendo transmitida no Nordeste e enviou o material que foi analisado por pesquisadores da Fiocruz, no Paraná. Pouco depois, no entanto, um casal de pesquisadores infectologistas da Universidade Federal da Bahia (UFBA) passou a investigar um material coletado por um médico da cidade de Camaçari, na Bahia. Em 29 de abril de 2015, Dr. Gúbio Soares Campos, que trabalhou junto com sua esposa, Dra. Sílvia, anunciou na imprensa baiana sua descoberta: o vírus Zika havia sido identificado como causador da doença misteriosa em Salvador e região metropolitana. Duas semanas depois, o grupo de Dr. Kléber, em parceria com a Fiocruz no Paraná, anunciou que também havia conseguido identificá-lo(c). Estabeleceu-se assim uma disputa entre os dois grupos sobre quem teria sido o primeiro a identificar o vírus.
Os impactos do vírus, contudo, não terminaram em sua disseminação inicial e, para contar a segunda e mais trágica parte dessa história, a autora introduz a primeira geração de mulheres gestantes afetadas pelo Zika. A narrativa construída pela autora inicia-se em Sofia Tezza, uma italiana que vivia em Natal e que engravidou de um brasileiro. Ao chegar em seu país, grávida de seis meses, ela descobriu que seu filho tinha manchas brancas por todo o cérebro e cada vez mais aquietava-se dentro de seu útero. Outras dessas mulheres são Géssica e Conceição, que fazem parte do primeiro grupo de grávidas que recebeu o diagnóstico de má-formação fetal causada pelo Zika. Ambas saíram do sertão (do Cariri da Paraíba) para consultarem a Dra. Adriana Melo, em Campina Grande. Na maternidade e em seu consultório particular, Dra. Adriana havia se deparado com outros casos como aqueles, sem entender ainda muito bem do que se tratavam; não era apenas a microcefalia, mas as manchas no cérebro e outros sintomas que sugeriam um processo infeccioso – o que depois foi diagnosticado como síndrome congênita do Zika. Em 15 de novembro de 2015, foi feito o anúncio, pela Fiocruz, no Rio de Janeiro, de que o vírus Zika havia sido isolado no líquido amniótico dessas duas mulheres, Géssica e Conceição. O mesmo diagnóstico foi confirmado para o bebê de Sofia Tezza, examinado em um centro de doenças tropicais na Eslovênia, onde morreu ainda no útero.
Diniz reforça a importância desse evento ter inserido a Dra. Adriana, uma médica de “beira de leito” nordestina, no panorama da ciência mundial. Tanto nesse caso quanto no caso do Dr. Kléber, meses antes, houve trocas, mas também conflitos entre cientistas e médicos do Nordeste, do Sul e do Sudeste. Assim, é importante destacar que o anúncio oficial da Fiocruz foi feito sem nenhuma menção ao nome da Dra. Adriana Melo, embora ela assine os artigos científicos publicados pelo grupo posteriormente.
De volta à trajetória das primeiras gestantes afetadas pelo Zika, Diniz relata que, no mesmo dia em que a filha de Conceição nasceu, o filho de Géssica veio ao mundo já morto. Géssica doou o corpo de seu filho para auxiliar nas investigações sobre o vírus e Conceição passou a investir arduamente no desenvolvimento da filha. Já Paulo, outro sertanejo, é o pai do bebê chamado pela autora de “gêmeo solitário”, por ter sido afetado pelo Zika, enquanto seu irmão nasceu aparentemente sem nenhuma sequela. O pai, que se esforça em preservar a privacidade da família, é um interlocutor que faz perguntas importantes e diferentes dos outros pais para a autora. Ele lembra que seu filho certamente não foi o primeiro em sua cidade a apresentar os traços típicos da síndrome congênita do Zika: outros que nasceram antes, em famílias muito mais pobres, já apresentavam as mesmas características e nunca receberam diagnóstico nenhum, pois não puderam se deslocar até Recife, onde seu filho obteve o diagnóstico e é, até hoje, acompanhado.
A autora observa que Paulo, quando fala da situação de seu filho, fala em termos de direitos e se questiona sobre o isolamento de inúmeras famílias nordestinas afetadas por essa e outras doenças. “Por que estamos isolados?”, pergunta. “Por que só no Nordeste?”, completa. Diniz não responde a Paulo, mas escreve posteriormente dizendo que a resposta é, na verdade, bastante simples: por um lado, a resposta relaciona-se à desigualdade social e à falta de estrutura das cidades nordestinas; por outro, a mais de quarenta anos de combate ineficiente ao mosquito Aedes aegypti no país.
Nos últimos capítulos do livro, a autora remete à campanha, lançada pelo governo brasileiro, cujo slogan foi “Um mosquito não é mais forte que um país inteiro”. Ela atenta para o fato de que, por trás do slogan, havia a ideia de que a responsabilidade pelo ocorrido era, sobretudo, do mosquito e de todos os brasileiros, e não somente do Estado e de sua negligência. Todavia, ao mesmo tempo em que o mosquito era lembrado como vilão, as mulheres e seus filhos eram esquecidas como as principais vítimas da epidemia. A autora lamenta o fato de o Brasil ter perdido a chance de iniciar uma discussão sobre aborto seguro e sobre a ampliação de direitos a métodos contraceptivos, como se deu na Colômbia, onde o aborto já era legalizado nesses casos.
Apesar dos esforços notáveis da autora, o livro não traz efetivamente os resultados de um trabalho de pesquisa, mas funciona bem como um apanhado geral do início da epidemia do Zika no Brasil, a partir de um ponto de vista importante: o de homens e mulheres do Nordeste brasileiro. Por essa razão, o livro “Zika: do sertão nordestino à ameaça global” possui o mérito de ser, ao mesmo tempo, um alerta sobre a negligência da gravidade da doença e sobre a ausência de políticas eficientes para lidar com ela no país, bem como um ponto de partida necessário para outras pesquisas realizadas sobre o Zika e sua síndrome congênita no território nacional.
REFERÊNCIAS
1. Diniz D. Zika: do sertão nordestino à ameaça global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2016. [ Links ]
cSó em 14 de maio de 2015, após novos testes feitos pela Fiocruz e pelo Instituto Evandro Chagas, o Ministério da Saúde fez o anúncio oficial de que o vírus Zika circulava no Brasil, mas que a população não deveria se preocupar, pois se tratava de um vírus inofensivo, que desaparecia em poucos dias e raramente tinha consequências mais sérias. No meio do ano, contudo, foi apontada a provável correlação do Zika com a síndrome de Guillain-Barré, essa, sim, com consequências mais graves em alguns casos.
Recebido: 27 de Janeiro de 2018; Aceito: 08 de Fevereiro de 2018