K. Eliza Williamson, M.A., Certificate em Estudos de Mulheres, Gênero e Sexualidade, doutoranda em Antropologia Cultural pela Rice University, Houston, Texas, EUA
No artigo, “Cuidado nos tempos de Zika: notas da pós-epidemia em Salvador (Bahia), Brasil”, publicado no periódico Interface (Botucatu, v. 22, n. 66), a autora se debruçou sobre as narrativas de três mulheres baianas, entrevistadas em Salvador em 2017, sobre as suas vivências do cuidado dos filhos com SCAIZV. A pesquisa que engloba essas narrativas consiste em uma série de 11 entrevistas com mães e pais de crianças com SCAIZV na Bahia que buscaram atendimento no Centro Estadual de Prevenção e Reabilitação da Pessoa com Deficiência (Cepred), centro de referência 100% SUS para crianças e adultos com deficiências de todo o Estado da Bahia, localizado na cidade capital de Salvador. As entrevistas foram realizadas utilizando um roteiro que abrangia as suas experiências desde o início da gestação até o momento da entrevista, onde buscou-se saber como vivenciaram a gravidez, o momento do diagnóstico e o parto e nascimento, assim como o cuidado do filho desde os primeiros dias de vida. Este último aspecto é o foco do presente artigo.
Ao relatarem as suas histórias, surgia com muita frequência nas narrativas, e de maneiras variadas, a questão de tempo. As mães relatavam, por um lado, como a vida tinha-se tornado uma “correria”: quase todo dia tinha atendimentos, exames e consultas médicas, que obrigavam elas a ficarem muitas horas do dia “na rua”, correndo “pra cima e pra baixo” com as crianças no colo. Mas, além disso, o tema de tempo surgia quando contavam dos desafios de cuidar de uma criança com uma condição nunca antes vista no mundo, e também quando pensavam — ou não pensavam — no futuro. No artigo, argumenta-se que a novidade da SCAIZV, com todas as incertezas que isso trazia, impactava em como as mães vivenciavam o tempo. Na antropologia, entende-se o tempo não como algo objetivo e fixo, que todo mundo vivencia da mesma forma, senão como um artefato cultural que é criado a partir das diversas experiências humanas e é vivenciado de formas variadas (BEAR, 2016; MILLAR, 2014; MUNN, 1992).
Uma das mães relatou, por exemplo, como o tempo do filho era não-linear; isto é, não seguia a progressão linear do desenvolvimento infantil “típico”. O desenvolvimento do filho parecia dar voltas, ou às vezes até parar no tempo. Antes não dava crises convulsivas, mas de uma hora para outra começou a dar; não tinha que tomar remédio, mas passou a precisar tomar; agora ele pode estar bem de saúde, mas daqui a pouco pode desenvolver uma infecção respiratória. Antes ele levantava a cabeça sozinho e sorria, mas após começar o remédio parou de fazer. Podemos entender essa fala relacionando-a ao que a doutora Ellen Samuels chama de “tempo de deficiência” (crip time): um tempo que problematiza a linearidade, que traz “paradas e começos espasmódicos, intervalos tédios e finais abruptos” (SAMUELS, 2017, parágrafo 5; tradução livre).
Em todas as falas existe uma forte presença dos temas de incerteza e imprevisibilidade. Por um lado, isso é próprio da vivência de ser a cuidadora principal (e muitas vezes única) de uma criança com múltiplas deficiências. Por outro lado, a incerteza e a imprevisibilidade, já são endêmicas — por assim dizer — na vida de muitas dessas mulheres, antes mesmo do nascimento do filho ou da filha com SCAIZV. Isso porque, na sua grande maioria, quem toma conta hoje dessas crianças são mulheres negras de baixa renda — população que sempre enfrentou uma série de incertezas e precariedades, tanto financeiras quanto da própria vida. Talvez a expressão mais forte desse fenômeno foi a menção, por duas mães entrevistadas, do medo da própria morte e os impactos que isso teria nos filhos. É também por isso, eu sugiro, que as mães relataram ter dificuldade de imaginar o futuro. Tudo era tão “incógnito”, tão imprevisível, que ficava difícil de pensar no que poderia vir pela frente. Algumas até se esforçavam conscientemente a não pensar nesse futuro.
Ao mesmo tempo, frente a essa profunda incerteza, as mães criam formas alternativas de vivenciar a maternidade e de perceber a criança. Desconstroem as ideias que tinham anteriormente sobre a criança que antes idealizaram, fazendo um esforço consciente para “não pensar no futuro” e “viver um dia de cada vez”. Param de comparar o desenvolvimento da criança ao de crianças “típicas”, escolhendo deixar a criança se desenvolver nos seus próprios termos, de criar seu próprio tempo. Assim, o não pensar é uma atitude ativa, não passiva, que as mães assumem. No seu trabalho sobre mães e avós negras de crianças com deficiências e doenças crônicas nos Estados Unidos, a antropóloga Cheryl Mattingly fala da esperança como uma prática paradoxal: a esperança é algo que tem que ser cultivada, praticada, renovada todos os dias, e não apenas algo que se tem ou não se tem. A esperança, aliás, é cultivada apesar dos inúmeros desafios que vão se implantando no caminho (MATTINGLY, 2010). Seguindo Mattingly, e lançando mão das falas das mães que foram entrevistadas na Bahia, sugere-se que um aspecto da prática de esperança pode ser, paradoxalmente, “não esperar nada”.
Referências
BEAR, L. Time as technique. Annu Rev Anthropol., v. 45, p. 487-502, 2016. DOI: 10.1146/annurev-anthro-102313-030159. ISSN: 1972-2012 [viewed 23 July 2018]. Available from: https://www.annualreviews.org/doi/abs/10.1146/annurev-anthro-102313-030159
BRYANT, A. and CHARMAZ, K. The SAGE Handbook of Grounded Theory. Thousand Oaks, CA: SAGE Publications, 2010.
MATTINGLY, C. The paradox of hope: Journeys through a Clinical Borderland. Berkeley, CA: University of California Press, 2010.
MILLAR, K. The precarious present: wageless labor and disrupted life in Rio de Janeiro, Brazil. Cult Anthropol., v. 29, n. 1, p. 32-53, 2014. ISSN: 0886-7356 [reviewed 23 July 2018]. DOI: 10.14506/cuan29.1.04
MUNN, N. D. The cultural anthropology of time: a critical essay. Annu Rev Anthropol., v. 21, p. 93-123, 1992. ISSN: 1972-2012 [viewed 23 July 2018]. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/2155982?seq=1#page_scan_tab_contents
SAMUELS, E. Six ways of looking at crip time. Disabil Stud Q., v. 37, n. 3, p. 1, 2017. ISSN: 2159-8371 [reviewed 23 July 2018]. DOI: 10.18061/dsq.v37i3.5824
Para ler o artigo, acesse
WILLIAMSON, K. E. Care in the time of Zika: notes on the ‘afterlife’ of the epidemic in Salvador (Bahia), Brazil. Interface (Botucatu) [online]. 2018, vol.22, n.66, pp.685-696. ISSN 1414-3283. [viewed 5 October 2018]. DOI: 10.1590/1807-57622017.0856. Available from: http://ref.scielo.org/mkfkyz
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